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A roteirista, escritora e jornalista Melina Dalboni é a autora do livro Diário de um filme (Rocco), documento que narra o processo criativo e produção do longa-metragem A paixão segundo G.H.. O filme foi baseado no romance homônimo de Clarice Lispector, dirigido por Luiz Fernando Carvalho e protagonizado por Maria Fernanda Cândido que estreou nos cinemas brasileiros no mês de abril (11) nos cinemas brasileiros.
No livro, também são reproduzidas as transcrições das Oficinas Teóricas, ponto de partida para todos os trabalhos do diretor do longa, Luiz Fernando de Carvalho, realizadas para a equipe durante a fase de pesquisa e ensaios. A obra tem como objetivo ser um que atravessa as questões subjetivas e técnicas do filme, as inspirações, a vulnerabilidade de uma criação, o diálogo entre a literatura de Clarice e o cinema de Carvalho, o extraordinário tour de force da atriz Maria Fernanda Candido e a busca incansável pela própria linguagem cinematográfica.
Melina Dalboni respondeu a três perguntas do PublishNews.
PublishNews – Como você foi chamada para participar do projeto?
Melina Dalboni – Eu e o Luiz Fernando vínhamos trabalhando juntos em uma série de projetos editoriais e de acervo, quando mergulhei no vasto arquivo de 30 anos de carreira do cineasta para criarmos seu site pessoal, o que nos deu muita cumplicidade, especialmente em relação à escrita, aos textos e à compreensão do seu universo e processo artístico. Quando ele decidiu que o filme A paixão segundo G.H. seria rodado, eu já tinha esse desejo de participar do trabalho de roteiro, e ele me convidou para integrar a equipe criativa do filme.
PN – Como foi a captação de materiais ao longo dos ensaios e das filmagens? Na nossa entrevista, Luiz brincou comigo que havia um certo mistério sobre a finalidade dos materiais?
MD – Naturalmente, por ser jornalista e escritora, tenho o hábito de registrar fatos, pensamentos e vestígios de algo que considero de valor futuro especialmente para arquivos, estudos e a própria comunicação. A "história" acontece a todo momento e pode nos escapar se não a condensamos. Percebendo que se tratava de um processo criativo e de filmagem muito denso e quase artesanal, algo muito fora dos padrões do audiovisual brasileiro, e a partir da obra de uma das maiores escritoras do mundo, fui anotando nos meus cadernos, guardando fotos e memórias. Inicialmente era apenas um registro factual, mas eu sabia da sua importância. Até que na pandemia, quando o Luiz Fernando estava montando o filme, eu comecei a escrever, sem dividir estes textos com ninguém. Quando cheguei ao fim, entendi que havia um livro e, mais do que isso, havia uma narrativa não ficcional que revela a aventura e a vulnerabilidade de se fazer cinema independente fora dos modelos no Brasil
PN – Qual o seu olhar sobre essa nova abordagem do romance de Clarice?
MD – O romance completa 60 anos e não havia como criar cinematograficamente a partir dele sem a influência de todo o processo de conscientização política e social que temos apreendido, especialmente no século XXI. Somos sujeitos da história e lemos o romance a partir dessa travessia. Não sinto que seja exatamente uma nova abordagem, porque tudo está presente no livro. O que fizemos foi potencializar ainda mais através da narrativa cinematográfica elementos que estão presentes em Clarice, como a questão da arquitetura escravocrata moderna imposta pelos apartamentos amplos e seus exíguos quartos de empregada, da patroa que invisibiliza sua empregada doméstica de tantas formas que nem faz questão de saber seu nome, do fato de que a empregada Janair é a única personagem com nome próprio no romance. Todas as palavras do filme são do romance. Todos elementos e cenas do filme foram criados a partir das linhas e entrelinhas do livro, de um modo em que potencializamos e ampliamos o retrato de uma sociedade patriarcal e preconceituosa dos anos 60 que ainda perdura, infelizmente, até hoje. Como costuma dizer o Luiz Fernando, A paixão segundo G.H. parece ter sido escrito ontem à noite enquanto dormíamos.